sábado, 27 de junho de 2009

Cueca de Academia

Carlos sempre fora criado para respeitar a mãe. Não havia um só dia em que ela lhe dizia com ênfase, a plenos pulmões:
- Cala essa boca, moleque!
E ele, sempre muito educado e obediente, não lhe respondia nada.
Mas essa não era a maior virtude de Carlos, o rapaz era feio. Limpinho sim, porque se não lhe escovava bem os dentes, era logo uma bronca histérica, sempre repressora, mas feio de uma feiúra discreta. Não era de má-formação dos ossos ou músculos, mas uma feiúra que não se sabia o porquê dos olhos não caberem naquele nariz, aquelas orelhas não caberem naquela cabeça, aqueles lábios não caberem naquela boca... E por conseqüência, suas palavras também nunca cabiam em assunto nenhum. Limitava-se a aceitar tudo o que os outros diziam, sem questionar, pois... era feio, coitado!
A maior frustração de Carlos era olhar seu reflexo no espelho e ver a paradoxal perfeição individual de todos os elementos do rosto e o desastre do conjunto.
Sua mãe, em reuniões com amigas, irmãs ou parentes, sempre que o assunto era a experiência do parto, não perdia a oportunidade de dizer orgulhosa:
- Carlos nasceu de parto normal. Não me doeu nada, nada! Foi muito rápido. Quando percebi, plof! Já tinha saído.
O jeito com que sua mãe descrevia o parto o exasperava. A facilidade do nascimento o fazia acreditar que nem o útero suportou tanta feiúra. Amaldiçoava silenciosamente o órgão que o gerou por tê-lo feito em condições sub-humanas, acreditando que ficara de cabeça para baixo durante todas as semanas de gestação, sendo esse o verdadeiro motivo de sua aparência medonha.
Na juventude, Carlos teve um insight: “Perde-se o rosto, salva-se o corpo!”. E então decidiu freqüentar uma academia próximo à faculdade.
Um lugar modesto, de poucas pessoas e baixos recursos. Mas foi lá que Carlos se entregou ao pequeno mundo da estética.
Como em todo lugar que freqüentava, lá não foi diferente. Ele passou despercebido diversas vezes ao ponto de não lhe cobrarem o primeiro mês da mensalidade, pois a secretária havia apagado seu nome dos arquivos achando que por lá nunca houvesse um aluno chamado Carlos.
Na terceira semana de malhação intensa, sucedeu algo curioso. Carlos chegou em casa e percebeu que tinha esquecido a sua cueca no vestiário. Por um momento, ele achou estranho, pois bolso de roupa suja vai roupa suja, e bolso de roupa limpa vai roupa limpa. Vai-se um vazio na ida e o outro vazio na volta. Não seria possível deixar nenhum item para trás. Mas enfim... o que se perde, perdido está.
Na semana seguinte, mais uma vez percebeu que a cueca não tinha voltado para a bolso de roupa suja, e dessa vez foi seguido de uma bronca de sua mãe, que lavava-lhe toda a roupa e sabia de cor, peça por peça que o rapaz tinha no guarda-roupa:
- O dia que haver tu de lavardes tuas cuecas, não hei de preocupar-te, por hora reze para que elas retornem para cá por si próprias.
Intrigado, repassou minuciosamente todo o percurso, desde a sala de ginástica até a sala de banho. Despiu o tórax, dobrou a peça, e guardou cuidadosamente no bolso de roupa suja. Despiu os membros inferiores, dobrou a peça e guardou no bolso de roupa suja sobre a peça anterior. Despiu os pés, dobrou as peças e guardou-as no mesmo bolso e por fim, despiu o sexo, dobrou a peça e o guardou por cima, no mesmo bolso.
Foi tomar banho, e ao retornar, sumiu!
“Como é possível?”, pensava Carlos. Ele tinha a mais absoluta certeza que havia colocado sua roupa íntima no local correto! Certamente se tratava de um furto. Entretanto, não ousava reclamar por uma peça tão insignificante. Ficou confuso. Quem roubaria uma cueca velha e usada. Tão feia quanto ele, mas ainda assim útil, porra!
Na sequência percebeu que era necessário encontrar a cueca a qualquer custo, pois não suportaria mais uma vez a repreensão da mãe. Não por não estar acostumado, mas ele preferia deixá-las para os motivos que ele conhecesse, que ele tivesse controle e não pelos mistérios pregados pela vida.
Movido pelo medo da bronca eminente, abriu os armários e procurou nas malas dos outros freqüentadores da academia. Abriu o primeiro armário, abriu a mala, bagunçou as roupas que estavam dentro e não encontrou. Abriu o segundo e a roupa estava pendurada em um cabide, mas havia uma mala. Abriu a mala e encontrou muitos livros. Descartou de pronto. “Ninguém guardaria uma cueca suja no meio de livros!”
Abriu o terceiro armário e encontrou uma pequena mala, mas não foi necessário abri-la, pois encontrou sua cueca sobre ela. A curiosidade substituiu o medo. “De quem é esse armário?”. Pegou a cueca, guardou na sua mala. Sem terminar de se secar, colocou a roupa rapidamente, voltou ao armário, abriu a mala, procurou por uma identificação e encontrou uma carteira. Sem pensar duas vezes, a pegou, colocou no bolso, fechou a mala, o armário e saiu correndo, esbarrando no faxineiro que estava entrando.
Ofegante, ofendido e assustado, tinha vontade de passar na primeira delegacia e entregar o ladrãzinho para ele ver o que era bom pra tosse. Se o que ele queria era uma cueca, que comprasse uma! Se lhe faltava dinheiro, que arrumasse um emprego! Se lhe faltava vontade para o trabalho, que roubasse! Mas que roube dignamente! Se for para ser um criminoso, arrume uma arma, assalte um banco, pegue o dinheiro e que compre sua própria cueca para honrar as calças que veste.
Quando estava seguro de qualquer pessoa que possa tê-lo seguido parou e sentou no banco de uma praça. Ficou alguns minutos parado para se recompor e olhando no sentido de onde tinha vindo para ter a absoluta certeza de que estava a salvo.
Olhou para a carteira, abriu e pegou o documento de identidade e leu “Clemaury”.
- Clemaury?
Carlos então ficou se acalmou. Uma sensação de alívio percorreu seus ombros. Sabia como agir e como argumentar. Uma intimidade estranha aproximou aquele nome feio de Carlos. Voltou para casa e a primeira coisa que fez foi lavar, secar e passar as cuecas.
No dia seguinte, Carlos calculou o horário foi aguardar Clemaury na porta da academia. Depois de 30 minutos o reconheceu pela foto do documento de identidade. Aproximou-se:
- Clamaury?
- Sim?
- Tem três minutos?
Clemaury já sabia sobre o que se tratava. Olhou para os lados e tomou a iniciativa de guiá-lo para a outra esquina e disse:
- Se buscas uma aventura, saiba que estás falando com a pessoa errada.
Carlos reiniciou a conversa:
- Estou com seus documentos, mas só te entrego se me disser por que as minhas. Por que, entre tantos armários, você foi escolher as minhas?
- Foi ao acaso. – Retrucou Clemaury.
- Saiba que agora tenho seus dados. Não se aproxime mais das minhas coisas.
- Como eu disse, não busco aventuras. Não precisa me chantagear, suas peças estão salvas.
Carlos pegou então a carteira e sua cueca lavada, passada e dobrada. Entregou-as a Clemaury.
Clemaury recebeu, abriu a cueca e discretamente aproximou do nariz. Dobrou novamente e devolveu a Carlos:
- Só me interessa o cheiro, não preciso mais desta.
Dizendo isto, partiu.
A rejeição de Clemaury abriu os olhos de Carlos. Era irremediável Carlos já fazia parte de um grande círculo de vaidades onde só a feiúra e o mau-gosto o rodeavam. Só a feiúra era sua evidência. Só a feiúra era sua arma sedutora. Carlos mergulhou em uma tristeza profunda. Amaldiçoou o céu com as nuvens cinza e sem lua, a fumaça preta do escapamento do caminhão, a flor murcha na árvore no outono, a coceira do cachorro sarnento, a água suja que passava pelo meio-fio e seu reflexo no vidro do carro estacionado ao seu lado. Chorou e secou as lágrimas amargas com a cueca. Limpa e cheirosa.