sábado, 1 de agosto de 2009

Pomerode

Não chorou. Nem haveria de chorar pelos próximos 12 anos após a morte do pai. Não porque lhe faltou afeto e nem porque apanhou pela malcriação, mas pelo método que foi publicado o óbito no único jornal da cidade.
“(...)hedonista, empanturrava-se de álcool(...)adúltero, amante fugiu(...)nó de marinheiro, na viga da armação do telhado foi encontrado(...)fatal, suicídio bem sucedido.”
Era o que conseguia lembrar-se da notícia de outrora. Theo já sabia que seria assim. Na cidade em que morava, as pessoas não se davam ao luxo de deixar o destino decidir por si próprio. O morrer pelas próprias mãos era uma forma de enfrentar a repressão silenciosa de uma sociedade intolerante e retrógrada.
O que mais o impressionava é a quantidade de enforcamentos que tinha a cidade. Eram tantos que quando um óbito era anunciado, as pessoas já assumiam que tratava-se de um enforcado. A prefeitura se preparava para recebê-los no Hospital Geral da Insuficiência Respiratória. Uma junta de pneumologistas se reunia contra a praga dos suicidas e quando aparecia um caso mal-sucedido, os médicos o prendiam no Hospital para que não houvesse uma frustração maior decorrente do ato mal cometido. A família não os visitariam nunca, pois pior do que ter um enforcado entre os seus era ter um suicida fracassado.
A imprensa local não se cansava de cobrir matérias sobre os seus enforcados. A riqueza de detalhes espantava e trazia especialistas do mundo todo. As notícias eram escritas com termos tão minuciosos que havia quem acreditasse que o enforcado pudesse descer das cordas e caminhar sozinho para a redação para escrever a sua própria história de morte.
Cético, Théo não se abalava com a crença daquele povo. De sua mãe, Antônia, só conseguia lembrar uma frase, dita com muita dor e satisfação:
- Graças a Deus!
Não se questionou nunca sobre o conteúdo daquela frase, sabia somente que a divina providência não tinha nada a ver com a decisão de seu pai. Tudo o que o jornal dizia a respeito dele era verdade. Era um pecador nato e com orgulho. Tinha certeza que seu pai escolheu o enforcamento para que todos pudessem apreciá-lo, como uma obra de arte aberta a visitação.
Theo era um filho exemplar. Bem criado, nascido para ser bom marido. Porém sua mãe não contava com a preferência do filho por outros garotos. Incomodava-se com aquela estranha preferência, mas não se permitia dizer nada ao filho. Não o apoiava e nem o reprovada. Sua opinião era guardada para si mesma e isso já lhe bastava como castigo.
Théo conhecia o sofrimento interno da mãe, e por este motivo não se permitia entrar em aventuras sem futuro. Escolhia rapazes tão bons e honestos quanto ele. Se Theo percebesse um desvio de personalidade, qualquer indício de traição, abandonava o parceiro no mesmo instante, sem dar justificativa alguma.
Foi para São Paulo. Recusou-se a entrar na vida adulta naquela cidade, cercada de credos e hipocrisias. Tinha medo de ser traído pelo próprio destino e acabar como seu pai e a maioria das pessoas que conhecia.
Cercou-se de amigos novos e conseguiu um emprego modesto como assistente de produção. Na agência em que trabalhava todos gostavam do seu desempenho. Muito humilde e de uma simpatia contida, não faltou quem lhe oferecesse serviço. Era cansativo, mas estava contente com sua rotina, longe de todos os fantasmas que o perseguiam.
- Quem é esse rapaz?
Foi a primeira vez em um mês que Bruno tinha reparado em Theo.
- Isso é treta forte! – Respondeu o chefe de Theo, silenciando em seguida.
Bruno era um galinha nato. Ficava com todos os rapazes e quando era bom para o currículo, com as garotas também. Tinha consciência da sua beleza. Agradava-lhe os elogios, mas não usava deles para ser arrogante. Talvez essa fosse uma das (se não a única) qualidades de Bruno. Defendia o relacionamento aberto como a solução mais digna para a infidelidade.
- Não sou infiel. Sou visionário. – Dizia.
Como não podia ser diferente, partiu pra cima de Theo seguro de que ia conquistar o rapaz.
Sem sucesso, pasmou! Havia tempos que não recebia uma rejeição. Tanto tempo que nem se lembrava mais. Não desistiu.
- Essa bixinha vai ser minha!
A perseguição ficou acirrada. Os colegas que cobriam eventos relacionados a esportes narravam o desempenho de Bruno com comentários dignos de jogo de futebol , em dia de final pelo radinho a pilha. “Theo recuou para o banheiro, o adversário partiu para o ataque, mas perdeu a posse da bola pela zaga. Theo avançou para o refeitório, está cara a cara com Bruno, desviou do primeiro, do segundo e sentou-se no útlimo banco, próximo das rachas aliadas”. Theo achava graça, ao contrário de Bruno, que entendia aquela brincadeira como chacota dos colegas.
Só ia nas festas da agência quando tinha certeza de que Theo iria. E se não fosse, Bruno contatava alguém para arrastá-lo de qualquer forma. Oferecia bebida e drogas, mas o rapaz só bebia água e suco. Na cabeça de Theo, era inconcebível usar substâncias alucinógenas, ainda mais vindo de alguém que tinha a fama de “perversa”. A insistência era tanta que Theo começou a evitá-lo.
Meses se passaram e um dia Bruno não foi trabalhar. Ligaram no celular e foi dada a notícia:
- Não suporto mais tanta rejeição.
Com 40 graus de febre sem motivo aparente, ficou dias sem aparecer na agência. Não tinha forças para comer e nem para atender seus amigos mais íntimos. Tentaram de tudo. Festas na sua prórpia casa, michês, muito álcool. Bruno aceitava tudo, mas se Theo não estava presente, voltava para o quarto e só saía para arrumar a bagunça no dia seguinte. Arrumava tudo com muito carinho, deixava pronto para receber Theo na próxima festa.
Quando soube, Theo teve pena, afinal não queria ser a causa do sofrimento de qualquer pessoa, seja lá qual for o motivo, não era justo.
Foi visitá-lo em uma sexta-feira de frio e não o reconheceu. O encontrou em estado deplorável. No lugar dos sapatos finos, um chinelo encardido. Seu cabelo sempre muito bem feito possuía pontas duplas. E no lugar do outfitting moderno, estava um roupão de banho surrado e molhado. Embora convalescido, recebeu seu objetivo com um sorriso cansado, mas sincero, que o acabou surpreendendo Theo.
- Esse não é o Bruno que eu conheço. Se lhe vissem assim não te chamavam para trabalho nenhum.
Do outro apenas ouviu:
- Por que? Por que? Por que?
Entregou-se a Bruno e contou a história da sua vida. Da tragédia familiar, da reclusão e silêncio materno, da sociedade crédula e cruel da sua cidade, de seu pai infiel e fanfarrão, e por isso tudo, os motivos que o fizeram se mudar para São Paulo.
Comovido, Bruno se sentiu pequeno. Pediu que se retirasse e que finalmente estava livre de suas perseguições.
Theo, por sua vez, reconheceu o lado humilde de Bruno. Sentiu uma forte atração pela forma com que foi ouvido e pelo olho lacrimejado do rapaz. Passou uma noite como nunca havia passado na sua vida. A entrega foi mútua. Naquela madrugada foram felizes.
Não se falaram durante o fim de semana. Theo daria tempo para a recuperação de Bruno e pela primeira vez depois de anos sabia que amava.
No começo da semana, ao retornar na agência, percebeu os olhares acusativos dos companheiros de trabalho. Sabia que falavam sobre ele. Que Theo era o assunto principal. Por fim, a dúvida foi esclarecida pelo seu chefe:
- Até que enfim, heim? Não resistiu aos encantos do Bruno!
Inconformado e movido por um sentimento de raiva, procurou Bruno e o que encontrou foi indiferença e desprezo.
No dia seguinte foi a vez de Theo não aparecer na agência. Com os pés encostado no chão foi encontrado suspenso por uma corda no seu apartamento. Uma corda, com um nó de marinheiro enforcara Theo.

sábado, 27 de junho de 2009

Cueca de Academia

Carlos sempre fora criado para respeitar a mãe. Não havia um só dia em que ela lhe dizia com ênfase, a plenos pulmões:
- Cala essa boca, moleque!
E ele, sempre muito educado e obediente, não lhe respondia nada.
Mas essa não era a maior virtude de Carlos, o rapaz era feio. Limpinho sim, porque se não lhe escovava bem os dentes, era logo uma bronca histérica, sempre repressora, mas feio de uma feiúra discreta. Não era de má-formação dos ossos ou músculos, mas uma feiúra que não se sabia o porquê dos olhos não caberem naquele nariz, aquelas orelhas não caberem naquela cabeça, aqueles lábios não caberem naquela boca... E por conseqüência, suas palavras também nunca cabiam em assunto nenhum. Limitava-se a aceitar tudo o que os outros diziam, sem questionar, pois... era feio, coitado!
A maior frustração de Carlos era olhar seu reflexo no espelho e ver a paradoxal perfeição individual de todos os elementos do rosto e o desastre do conjunto.
Sua mãe, em reuniões com amigas, irmãs ou parentes, sempre que o assunto era a experiência do parto, não perdia a oportunidade de dizer orgulhosa:
- Carlos nasceu de parto normal. Não me doeu nada, nada! Foi muito rápido. Quando percebi, plof! Já tinha saído.
O jeito com que sua mãe descrevia o parto o exasperava. A facilidade do nascimento o fazia acreditar que nem o útero suportou tanta feiúra. Amaldiçoava silenciosamente o órgão que o gerou por tê-lo feito em condições sub-humanas, acreditando que ficara de cabeça para baixo durante todas as semanas de gestação, sendo esse o verdadeiro motivo de sua aparência medonha.
Na juventude, Carlos teve um insight: “Perde-se o rosto, salva-se o corpo!”. E então decidiu freqüentar uma academia próximo à faculdade.
Um lugar modesto, de poucas pessoas e baixos recursos. Mas foi lá que Carlos se entregou ao pequeno mundo da estética.
Como em todo lugar que freqüentava, lá não foi diferente. Ele passou despercebido diversas vezes ao ponto de não lhe cobrarem o primeiro mês da mensalidade, pois a secretária havia apagado seu nome dos arquivos achando que por lá nunca houvesse um aluno chamado Carlos.
Na terceira semana de malhação intensa, sucedeu algo curioso. Carlos chegou em casa e percebeu que tinha esquecido a sua cueca no vestiário. Por um momento, ele achou estranho, pois bolso de roupa suja vai roupa suja, e bolso de roupa limpa vai roupa limpa. Vai-se um vazio na ida e o outro vazio na volta. Não seria possível deixar nenhum item para trás. Mas enfim... o que se perde, perdido está.
Na semana seguinte, mais uma vez percebeu que a cueca não tinha voltado para a bolso de roupa suja, e dessa vez foi seguido de uma bronca de sua mãe, que lavava-lhe toda a roupa e sabia de cor, peça por peça que o rapaz tinha no guarda-roupa:
- O dia que haver tu de lavardes tuas cuecas, não hei de preocupar-te, por hora reze para que elas retornem para cá por si próprias.
Intrigado, repassou minuciosamente todo o percurso, desde a sala de ginástica até a sala de banho. Despiu o tórax, dobrou a peça, e guardou cuidadosamente no bolso de roupa suja. Despiu os membros inferiores, dobrou a peça e guardou no bolso de roupa suja sobre a peça anterior. Despiu os pés, dobrou as peças e guardou-as no mesmo bolso e por fim, despiu o sexo, dobrou a peça e o guardou por cima, no mesmo bolso.
Foi tomar banho, e ao retornar, sumiu!
“Como é possível?”, pensava Carlos. Ele tinha a mais absoluta certeza que havia colocado sua roupa íntima no local correto! Certamente se tratava de um furto. Entretanto, não ousava reclamar por uma peça tão insignificante. Ficou confuso. Quem roubaria uma cueca velha e usada. Tão feia quanto ele, mas ainda assim útil, porra!
Na sequência percebeu que era necessário encontrar a cueca a qualquer custo, pois não suportaria mais uma vez a repreensão da mãe. Não por não estar acostumado, mas ele preferia deixá-las para os motivos que ele conhecesse, que ele tivesse controle e não pelos mistérios pregados pela vida.
Movido pelo medo da bronca eminente, abriu os armários e procurou nas malas dos outros freqüentadores da academia. Abriu o primeiro armário, abriu a mala, bagunçou as roupas que estavam dentro e não encontrou. Abriu o segundo e a roupa estava pendurada em um cabide, mas havia uma mala. Abriu a mala e encontrou muitos livros. Descartou de pronto. “Ninguém guardaria uma cueca suja no meio de livros!”
Abriu o terceiro armário e encontrou uma pequena mala, mas não foi necessário abri-la, pois encontrou sua cueca sobre ela. A curiosidade substituiu o medo. “De quem é esse armário?”. Pegou a cueca, guardou na sua mala. Sem terminar de se secar, colocou a roupa rapidamente, voltou ao armário, abriu a mala, procurou por uma identificação e encontrou uma carteira. Sem pensar duas vezes, a pegou, colocou no bolso, fechou a mala, o armário e saiu correndo, esbarrando no faxineiro que estava entrando.
Ofegante, ofendido e assustado, tinha vontade de passar na primeira delegacia e entregar o ladrãzinho para ele ver o que era bom pra tosse. Se o que ele queria era uma cueca, que comprasse uma! Se lhe faltava dinheiro, que arrumasse um emprego! Se lhe faltava vontade para o trabalho, que roubasse! Mas que roube dignamente! Se for para ser um criminoso, arrume uma arma, assalte um banco, pegue o dinheiro e que compre sua própria cueca para honrar as calças que veste.
Quando estava seguro de qualquer pessoa que possa tê-lo seguido parou e sentou no banco de uma praça. Ficou alguns minutos parado para se recompor e olhando no sentido de onde tinha vindo para ter a absoluta certeza de que estava a salvo.
Olhou para a carteira, abriu e pegou o documento de identidade e leu “Clemaury”.
- Clemaury?
Carlos então ficou se acalmou. Uma sensação de alívio percorreu seus ombros. Sabia como agir e como argumentar. Uma intimidade estranha aproximou aquele nome feio de Carlos. Voltou para casa e a primeira coisa que fez foi lavar, secar e passar as cuecas.
No dia seguinte, Carlos calculou o horário foi aguardar Clemaury na porta da academia. Depois de 30 minutos o reconheceu pela foto do documento de identidade. Aproximou-se:
- Clamaury?
- Sim?
- Tem três minutos?
Clemaury já sabia sobre o que se tratava. Olhou para os lados e tomou a iniciativa de guiá-lo para a outra esquina e disse:
- Se buscas uma aventura, saiba que estás falando com a pessoa errada.
Carlos reiniciou a conversa:
- Estou com seus documentos, mas só te entrego se me disser por que as minhas. Por que, entre tantos armários, você foi escolher as minhas?
- Foi ao acaso. – Retrucou Clemaury.
- Saiba que agora tenho seus dados. Não se aproxime mais das minhas coisas.
- Como eu disse, não busco aventuras. Não precisa me chantagear, suas peças estão salvas.
Carlos pegou então a carteira e sua cueca lavada, passada e dobrada. Entregou-as a Clemaury.
Clemaury recebeu, abriu a cueca e discretamente aproximou do nariz. Dobrou novamente e devolveu a Carlos:
- Só me interessa o cheiro, não preciso mais desta.
Dizendo isto, partiu.
A rejeição de Clemaury abriu os olhos de Carlos. Era irremediável Carlos já fazia parte de um grande círculo de vaidades onde só a feiúra e o mau-gosto o rodeavam. Só a feiúra era sua evidência. Só a feiúra era sua arma sedutora. Carlos mergulhou em uma tristeza profunda. Amaldiçoou o céu com as nuvens cinza e sem lua, a fumaça preta do escapamento do caminhão, a flor murcha na árvore no outono, a coceira do cachorro sarnento, a água suja que passava pelo meio-fio e seu reflexo no vidro do carro estacionado ao seu lado. Chorou e secou as lágrimas amargas com a cueca. Limpa e cheirosa.

sábado, 30 de maio de 2009

O Gato

Quando Frederico chegou no apartamento com aquele bicho na mão, ai meu Deus! quanto drama por causa de um bicho fofo e inofensivo. Não por causa dos pelos ou cheiro ou dos dejetos do animal. É que Antônio sempre tivera uma superstição acerca de toda aquela classe de animal.
- Gato é coisa do demo!
Tudo bem, Frederico sempre soube que o pequeno fora criado em casa de família respeitada, que a mãe era católica, uma santa! Ao contrario da sua, que seja lá qual entidade a tenha no mundo dos espíritos, que sempre gostou de uma mandinga, uma simpatia, de ler o futuro nas cartas, na borra do café e tudo quanto pudesse fugir de qualquer explicação Divina ou humana.
O relacionamento dos dois era muito estável, de invejar qualquer bixa gafanhota, que torcia em vão para que acontecesse com os dois o que acontecia com a maioria dos relacionamentos: um deslize e a separação. Antônio era visivelmente mais bonito que Frederico, mas sem graça. Já Frederico sempre era o centro das atenções nos jantares, clubs, eventos e até jogando dominó sua sensualidade incomodava. Mas quando a discussão estava acerca dos mistérios da vida e da morte, não havia o que fizesse os dois ficarem unidos. Certa vez, ao defender a teoria da evolução de Darwin durante o almoço, Antônio não comeu mais e foi pra casa da mãe.
Mas de agora em diante não se tratava mais dos dois, cuja discussão sobre a divina providência era sempre evitada. Havia um terceiro, um outro, um “espírito do mal” rondando os cômodos de um apartamento onde mal cabia o casal. Numa circunstância como essa, era inevitável que Antônio cruzasse com aquele animal. Todas as características, todos os detalhes, o andar sedutor, seu corpo esguio, as orelhas em riste, sua cor amarela rajada de laranja e seu nome, que Frederico resolveu colocar só de birra: “Lú”, tudo lembrava o... lembrava o... o Outro.
No terceiro aniversário de união entre os dois, Frederico reservou uma vaga para jantar no Terraço Itália. Antônio achou estranho, pois sempre ouvira Frederico reclamando das contas da casa, mas como se tratava de uma data comemorativa rendeu-se aos caprichos do parceiro.
O melhor champagne, a lagosta mais suculenta, a luz que favorecia os dois, a brisa mais limpa do ar de São Paulo que passava sobre a mesa, o garçom que sempre chegava na hora certa como se adivinhasse às suas solicitações. Foi uma daquelas noites inesquecíveis que só existem nas novelas das oito. Antônio chegou a desejar que as “amigas” pudessem vê-los pela televisão para que caíssem duras e secas de inveja.
- Eu pago! – Disse Frederico.
Antônio pensou que não podia estar mais perfeito. Mas em casa, quando a noite estava para terminar, quando Antônio já estava na cama, Frederico, bêbado e sedutor, foi em sua direção em cat walk.
Aquele andar exasperou Antônio, um frio que percorreu toda a espinha o fez recusar todas as possibilidades de final feliz daquela noite.
- Hoje não! Vamos dormir!
- Por quê? – Insistiu Frederico.
- Chega! Apague a luz e venha logo para a cama. – Disse Antônio, categórico.
No dia seguinte, após um sexo matinal mal-feito, Frederico saiu para trabalhar. Movido por uma vingança mesquinha, como uma vontade de descontar, de estar quite com o destino, Antônio não alimentou o gato.
Sexo, a partir de então, passou a não ser mais tão interessante. Porém, apesar deste percalço, desta característica que Antônio entendia como uma má fase, ele não podia reclamar da vida. Havia sido promovido e Frederico conseguiu a gestão de um projeto importante na empresa em que trabalhava. Faziam planos de viajar juntos nas próximas férias. Conheceriam a Europa inteira, de Budapeste a Lisboa. Não haveria um lugar por onde eles não passassem. Consultaram planos e agentes de viagens, renovaram os passaportes e uma noite, quando estavam juntos, conversando sobre as novidades da noite de Berlin, escutaram o mio do gato.
Frederico saltou e perguntou assustado:
- E o Lú?
Antônio virou a cara.
Apesar de muitos amigos, não lhes vinha à mente quem pudesse ficar com o gato. Quando Frederico lhe perguntou a possibilidade da mãe de Antônio ficar com o gato, seu parceiro reagiu como se houvesse ouvido uma heresia.
- Você ficou louco?
Pensaram, pensaram... Alguns nomes chegaram a ser citados e consultados, mas nada de aparecer ninguém que pudesse ou quisesse ficar com o pobrezinho. Júnior disse que quase não parava em casa. Chrysthyann estaria recebendo seus pais do interior. Renato fazia pós-graduação e precisava de paz para estudar. Tales agendou depilação à laser e os pelos do gato poderiam desencadear uma reação alérgica. Cássio disse que Deus o livre, por causa da rinite.
Antônio sugeriu um hotel para gatos, mas a possibilidade do Lú contrair pragas de outros animais fez Frederico descartar a possibilidade de pronto.
As desculpas das mais variadas os fizeram desistir da viagem e no dia seguinte Antônio não alimentou o gato.
E a vida dos dois continuava seguindo seu curso. Esbanjavam em festas, iam a restaurantes caros, trocaram de carro, reformaram o apartamento, não havia mais nada em comum entre a vida adquirida com muito dinheiro e a vida no começo do relacionamento. A única coisa em comum entre os dois tempos vividos pelos dois era, sem sombra de dúvida, o gato.
Sempre que conversavam com seus amigos, por telefone ou por e-mail, sempre faziam a mesma pergunta:
- E o Lú? Como ele está?
Frederico recebia esta preocupação como uma pergunta trivial, apenas como um assunto a mais para se discutir. Antônio se incomodava demais com esta preocupação hipócrita. Mas a verdade era que o gato era o único laço que sobrou entre o antigo e o novo estilo de vida do casal.
Um dia, depois de um jantar silencioso, Antônio e Frederico voltaram para casa e tentaram fazer sexo, mas a cama estava cheirando xixi de gato. Apesar de nenhuma evidência, nenhuma marca, nenhuma mancha amarela, nem umidade, nada, o cheiro era evidente e forte. Procuraram pelo quarto, na sala, no banheiro, na cozinha, área de serviço, o cheiro não estava nem na caixa de areia, mas exalava somente na cama. Trocaram o lençol e não resolveu.
Isto acabou desencadeando em uma briga. Uma briga como há muito tempo não houve. Antônio exigia o desaparecimento do gato. Frederico não cogitava em nenhum momento em se desfazer do Lú. E dessa discussão passou para outra, e um motivo era motivo para um outro motivo. Antônio aumentou a voz, Frederico aumentou mais ainda. Os vizinhos não conseguiam dormir. No auge da discussão, depois de todas as ofensas possíveis, Frederico tocou na ferida mais sensível de Antônio:
- Se sua mãe não o mimasse tanto...
Este comentário foi respondido com um soco de um punho bem fechado no meio da cara de Frederico.
Assustado com a reação do namorado, Frederico vestiu-se, colocou os sapatos sem amarrar mesmo, pegou a carteira, o celular, olhou bem para a cara de Antônio e disse somente:
- Tenha uma boa vida!
Saiu do apartamento e apertou o botão do elevador. Não funcionou. Decidiu descer de escada. Antes de pisar no primeiro degrau se surpreendeu com seu próprio grito, uma fração de segundo antes de tropeçar no cadarço do tênis, rolar escada abaixo e parar no primeiro patamar com o pescoço quebrado.
Após um breve silencio, os vizinhos saíram para ver o que tinha acontecido.
Antônio, percebendo o movimento de uma tragédia do lado de fora do apartamento, permaneceu parado na porta do quarto, assustado e olhando para os travesseiros.
Neste instante, o gato saiu debaixo da cama com um pequeno trapo sujo de sua própria urina. Largou-o aos pés de Antônio, subiu na cama sobre o lençol recém-colocado, lambeu o dorso, pousou a cabeça sobre as patas dianteiras cruzadas e ronronou.

quinta-feira, 7 de maio de 2009

O Sequestro

Foi naquele chill out que Odair, muito seguro de si, exclamou:
- Sequestro é pra quem tem status!
Num tom de deboche como aquelas conversas pós-goró, iniciou-se um coro de gargalhada. Mas a verdade é que Odair realmente acreditava nisso, acreditara sempre.
- Claro. Alguém conhece alguém, ou de alguém conhecido que, sendo sem dinheiro, foi sequestrado?
Ouve reflexão. Mas Ricardo, que conhecia bem o perfil aristocrata do namorado, sabia que não se tratava de mais uma conversa a toa de uma manhã de domingo.
- De fato!
Odair era e sempre fora bem de vida. O pai era juiz, a mãe pintava e fazia exposições de suas obras esporadicamente. A mais das vezes só compareciam os mais chegados, que compravam os quadros em nome da amizade, mas não o penduravam nunca.
Fora a vez que fora expulso do colégio por má-conduta, não houve na vida de Odair nenhum momento de grande dificuldade ou humilhação. Nem mesmo quando, por iniciativa própria, resolveu contar pra família, em um encontro dominical, que era gay. A reação de todos não foi inesperada, muito pelo contrário, seu pai apenas exclamou:
- Contando que não seja o meu bolso que arda...
Era só o que seu pai pedia sempre: que preservasse o status, pois “com ele paga-se o respeito de quem quer que o valha”.
Quando Odair conheceu Ricardo, a família logo aprovou. Moço bem-apanhado, alto e garboso. O que lhe faltava em dinheiro, sobrava em boa-educação. Era pobre, o rapaz, mas fingia bem! Sempre soube o que quis: Chegar ao High-Society sem passar ganhar o título de “Emergente”. Odair sabia de tudo isso e o defendia:
- Eu pago pela pobreza dele.
O fato é que toda essa facilidade na vida de Odair sempre fora monótona. Isso fazia com que ele buscasse mais aventura. Tentou esqui, pára-quedas, certa vez, no anonimato, pagou para ser o homem bala de um circo que passava pela cidade. Mas nada o excitava o bastante quanto a ideia de um sequestro. Sequestro de verdade, com polícia, telefonema grampeado, ameaça de morte e o caralho.
Foi no seu aniversário. Ricardo chegou na casa de Odair com um pacote debaixo do braço, um presente que todos sabiam ser do tamanho da sua capacidade. Apesar dessa constatação não foi isso que chamava mais a atenção dos presentes na casa, e sim da sua futura sogra, aos prantos holywoodianos. Todos estavam tensos na casa... O cunhado de Odair olhou Ricardo de baixo até em cima e logo abraçou a esposa. E por fim o pai deu a notícia:
- Odair foi sequestrado.
A notícia foi sabida pela família através de um telefonema anônimo:
- Quinhentas mil pratas ou a bixinha morre!
O pai de Odair ficou confuso e instintivamente pôs em xeque o dinheiro e o filho. Estava muito evidente a sua preocupação com Odair. Muitas vezes, andando de um lado para o outro pela sala, todos viam a preocupação do velho. A relação de pai e filho com Odair sempre fora distante, mas eles tiveram os seus momentos. Muitas das viagens que Odair fez às custas do pai, foram feitas com ele mesmo enquanto criança. Nessa busca da intimidade com o filho, só a imagem da infância lhe vinha à mente. Via o filho ainda na sua primeira bicicleta, nos corais da escola, nas peças de teatro e nas feiras de ciências. Tentou aproximar a memória de lembranças mais recentes e sempre que chegava na adolescência, se pegava fazendo contas para saber quanto o sequestrador realmente merecia.
Entre uma lembrança e outra o telefone tocava, e a cada telefonema era uma negociação diferente, e o pai de Odair foi tomando cada vez mais a frente das negociações e chegou um momento que as lembranças do filho foram ficando cada vez mais apagadas ao ponto de ele acreditar que poderia ter o filho de volta por nenhum tostão furado.
Por outro lado, os sequestradores foram perdendo as estribeiras e a situação ficou tensa. Os sequestradores passaram a ameaçar a vida de Odair e o fizeram ouvir os berros do garoto quando lhe cortaram a metade de cima da orelha. Odair implorou para que os pagasse pois não suportava mais tanta dor. Já a mãe insistiu para que os pagasse pois não concebia a ideia de ter um filho, não sem orelha, mas pior: sem a metade dela. Ricardo, o namorado ficava chocado com a relação entre pais e filhos daquela família. Era inconcebível que um pai, que tem tanto dinheiro quanto necessário para seu namorado ter 7 orelhas novas, não pudesse pagar para que o tivesse vivo, ainda que sem orelha alguma.
No dia seguinte o pai recebeu dos sequestradores a metade de cima da orelha direita em um saco plástico. Na mesma hora o pai reconheceu a orelha como não sendo a do filho, pois se tratava de uma orelha perfeita, intacta; e não como as orelhas das pessoas que utilizam das agulhas para colocar seus adereços. Então anunciou:
- Esta história é uma farsa. Não terão um só centavo!
A mãe de Odair quase desmaiou. E Ricardo, entendendo o jogo do velho, o chamou de canto e lhe ameaçou com veemência:
- Ou me paga as quinhentas mi pratas ou mando matar o seu filho.
Então o velho entendeu tudo e retrucou:
- Então você está com ele neste jogo sujo. Pois então eu lhe digo: Dou-lhe quinhentas mil pratas se atirares tu no meu filho.
- Eu atiro! – Respondeu Ricardo.