sábado, 30 de maio de 2009

O Gato

Quando Frederico chegou no apartamento com aquele bicho na mão, ai meu Deus! quanto drama por causa de um bicho fofo e inofensivo. Não por causa dos pelos ou cheiro ou dos dejetos do animal. É que Antônio sempre tivera uma superstição acerca de toda aquela classe de animal.
- Gato é coisa do demo!
Tudo bem, Frederico sempre soube que o pequeno fora criado em casa de família respeitada, que a mãe era católica, uma santa! Ao contrario da sua, que seja lá qual entidade a tenha no mundo dos espíritos, que sempre gostou de uma mandinga, uma simpatia, de ler o futuro nas cartas, na borra do café e tudo quanto pudesse fugir de qualquer explicação Divina ou humana.
O relacionamento dos dois era muito estável, de invejar qualquer bixa gafanhota, que torcia em vão para que acontecesse com os dois o que acontecia com a maioria dos relacionamentos: um deslize e a separação. Antônio era visivelmente mais bonito que Frederico, mas sem graça. Já Frederico sempre era o centro das atenções nos jantares, clubs, eventos e até jogando dominó sua sensualidade incomodava. Mas quando a discussão estava acerca dos mistérios da vida e da morte, não havia o que fizesse os dois ficarem unidos. Certa vez, ao defender a teoria da evolução de Darwin durante o almoço, Antônio não comeu mais e foi pra casa da mãe.
Mas de agora em diante não se tratava mais dos dois, cuja discussão sobre a divina providência era sempre evitada. Havia um terceiro, um outro, um “espírito do mal” rondando os cômodos de um apartamento onde mal cabia o casal. Numa circunstância como essa, era inevitável que Antônio cruzasse com aquele animal. Todas as características, todos os detalhes, o andar sedutor, seu corpo esguio, as orelhas em riste, sua cor amarela rajada de laranja e seu nome, que Frederico resolveu colocar só de birra: “Lú”, tudo lembrava o... lembrava o... o Outro.
No terceiro aniversário de união entre os dois, Frederico reservou uma vaga para jantar no Terraço Itália. Antônio achou estranho, pois sempre ouvira Frederico reclamando das contas da casa, mas como se tratava de uma data comemorativa rendeu-se aos caprichos do parceiro.
O melhor champagne, a lagosta mais suculenta, a luz que favorecia os dois, a brisa mais limpa do ar de São Paulo que passava sobre a mesa, o garçom que sempre chegava na hora certa como se adivinhasse às suas solicitações. Foi uma daquelas noites inesquecíveis que só existem nas novelas das oito. Antônio chegou a desejar que as “amigas” pudessem vê-los pela televisão para que caíssem duras e secas de inveja.
- Eu pago! – Disse Frederico.
Antônio pensou que não podia estar mais perfeito. Mas em casa, quando a noite estava para terminar, quando Antônio já estava na cama, Frederico, bêbado e sedutor, foi em sua direção em cat walk.
Aquele andar exasperou Antônio, um frio que percorreu toda a espinha o fez recusar todas as possibilidades de final feliz daquela noite.
- Hoje não! Vamos dormir!
- Por quê? – Insistiu Frederico.
- Chega! Apague a luz e venha logo para a cama. – Disse Antônio, categórico.
No dia seguinte, após um sexo matinal mal-feito, Frederico saiu para trabalhar. Movido por uma vingança mesquinha, como uma vontade de descontar, de estar quite com o destino, Antônio não alimentou o gato.
Sexo, a partir de então, passou a não ser mais tão interessante. Porém, apesar deste percalço, desta característica que Antônio entendia como uma má fase, ele não podia reclamar da vida. Havia sido promovido e Frederico conseguiu a gestão de um projeto importante na empresa em que trabalhava. Faziam planos de viajar juntos nas próximas férias. Conheceriam a Europa inteira, de Budapeste a Lisboa. Não haveria um lugar por onde eles não passassem. Consultaram planos e agentes de viagens, renovaram os passaportes e uma noite, quando estavam juntos, conversando sobre as novidades da noite de Berlin, escutaram o mio do gato.
Frederico saltou e perguntou assustado:
- E o Lú?
Antônio virou a cara.
Apesar de muitos amigos, não lhes vinha à mente quem pudesse ficar com o gato. Quando Frederico lhe perguntou a possibilidade da mãe de Antônio ficar com o gato, seu parceiro reagiu como se houvesse ouvido uma heresia.
- Você ficou louco?
Pensaram, pensaram... Alguns nomes chegaram a ser citados e consultados, mas nada de aparecer ninguém que pudesse ou quisesse ficar com o pobrezinho. Júnior disse que quase não parava em casa. Chrysthyann estaria recebendo seus pais do interior. Renato fazia pós-graduação e precisava de paz para estudar. Tales agendou depilação à laser e os pelos do gato poderiam desencadear uma reação alérgica. Cássio disse que Deus o livre, por causa da rinite.
Antônio sugeriu um hotel para gatos, mas a possibilidade do Lú contrair pragas de outros animais fez Frederico descartar a possibilidade de pronto.
As desculpas das mais variadas os fizeram desistir da viagem e no dia seguinte Antônio não alimentou o gato.
E a vida dos dois continuava seguindo seu curso. Esbanjavam em festas, iam a restaurantes caros, trocaram de carro, reformaram o apartamento, não havia mais nada em comum entre a vida adquirida com muito dinheiro e a vida no começo do relacionamento. A única coisa em comum entre os dois tempos vividos pelos dois era, sem sombra de dúvida, o gato.
Sempre que conversavam com seus amigos, por telefone ou por e-mail, sempre faziam a mesma pergunta:
- E o Lú? Como ele está?
Frederico recebia esta preocupação como uma pergunta trivial, apenas como um assunto a mais para se discutir. Antônio se incomodava demais com esta preocupação hipócrita. Mas a verdade era que o gato era o único laço que sobrou entre o antigo e o novo estilo de vida do casal.
Um dia, depois de um jantar silencioso, Antônio e Frederico voltaram para casa e tentaram fazer sexo, mas a cama estava cheirando xixi de gato. Apesar de nenhuma evidência, nenhuma marca, nenhuma mancha amarela, nem umidade, nada, o cheiro era evidente e forte. Procuraram pelo quarto, na sala, no banheiro, na cozinha, área de serviço, o cheiro não estava nem na caixa de areia, mas exalava somente na cama. Trocaram o lençol e não resolveu.
Isto acabou desencadeando em uma briga. Uma briga como há muito tempo não houve. Antônio exigia o desaparecimento do gato. Frederico não cogitava em nenhum momento em se desfazer do Lú. E dessa discussão passou para outra, e um motivo era motivo para um outro motivo. Antônio aumentou a voz, Frederico aumentou mais ainda. Os vizinhos não conseguiam dormir. No auge da discussão, depois de todas as ofensas possíveis, Frederico tocou na ferida mais sensível de Antônio:
- Se sua mãe não o mimasse tanto...
Este comentário foi respondido com um soco de um punho bem fechado no meio da cara de Frederico.
Assustado com a reação do namorado, Frederico vestiu-se, colocou os sapatos sem amarrar mesmo, pegou a carteira, o celular, olhou bem para a cara de Antônio e disse somente:
- Tenha uma boa vida!
Saiu do apartamento e apertou o botão do elevador. Não funcionou. Decidiu descer de escada. Antes de pisar no primeiro degrau se surpreendeu com seu próprio grito, uma fração de segundo antes de tropeçar no cadarço do tênis, rolar escada abaixo e parar no primeiro patamar com o pescoço quebrado.
Após um breve silencio, os vizinhos saíram para ver o que tinha acontecido.
Antônio, percebendo o movimento de uma tragédia do lado de fora do apartamento, permaneceu parado na porta do quarto, assustado e olhando para os travesseiros.
Neste instante, o gato saiu debaixo da cama com um pequeno trapo sujo de sua própria urina. Largou-o aos pés de Antônio, subiu na cama sobre o lençol recém-colocado, lambeu o dorso, pousou a cabeça sobre as patas dianteiras cruzadas e ronronou.

quinta-feira, 7 de maio de 2009

O Sequestro

Foi naquele chill out que Odair, muito seguro de si, exclamou:
- Sequestro é pra quem tem status!
Num tom de deboche como aquelas conversas pós-goró, iniciou-se um coro de gargalhada. Mas a verdade é que Odair realmente acreditava nisso, acreditara sempre.
- Claro. Alguém conhece alguém, ou de alguém conhecido que, sendo sem dinheiro, foi sequestrado?
Ouve reflexão. Mas Ricardo, que conhecia bem o perfil aristocrata do namorado, sabia que não se tratava de mais uma conversa a toa de uma manhã de domingo.
- De fato!
Odair era e sempre fora bem de vida. O pai era juiz, a mãe pintava e fazia exposições de suas obras esporadicamente. A mais das vezes só compareciam os mais chegados, que compravam os quadros em nome da amizade, mas não o penduravam nunca.
Fora a vez que fora expulso do colégio por má-conduta, não houve na vida de Odair nenhum momento de grande dificuldade ou humilhação. Nem mesmo quando, por iniciativa própria, resolveu contar pra família, em um encontro dominical, que era gay. A reação de todos não foi inesperada, muito pelo contrário, seu pai apenas exclamou:
- Contando que não seja o meu bolso que arda...
Era só o que seu pai pedia sempre: que preservasse o status, pois “com ele paga-se o respeito de quem quer que o valha”.
Quando Odair conheceu Ricardo, a família logo aprovou. Moço bem-apanhado, alto e garboso. O que lhe faltava em dinheiro, sobrava em boa-educação. Era pobre, o rapaz, mas fingia bem! Sempre soube o que quis: Chegar ao High-Society sem passar ganhar o título de “Emergente”. Odair sabia de tudo isso e o defendia:
- Eu pago pela pobreza dele.
O fato é que toda essa facilidade na vida de Odair sempre fora monótona. Isso fazia com que ele buscasse mais aventura. Tentou esqui, pára-quedas, certa vez, no anonimato, pagou para ser o homem bala de um circo que passava pela cidade. Mas nada o excitava o bastante quanto a ideia de um sequestro. Sequestro de verdade, com polícia, telefonema grampeado, ameaça de morte e o caralho.
Foi no seu aniversário. Ricardo chegou na casa de Odair com um pacote debaixo do braço, um presente que todos sabiam ser do tamanho da sua capacidade. Apesar dessa constatação não foi isso que chamava mais a atenção dos presentes na casa, e sim da sua futura sogra, aos prantos holywoodianos. Todos estavam tensos na casa... O cunhado de Odair olhou Ricardo de baixo até em cima e logo abraçou a esposa. E por fim o pai deu a notícia:
- Odair foi sequestrado.
A notícia foi sabida pela família através de um telefonema anônimo:
- Quinhentas mil pratas ou a bixinha morre!
O pai de Odair ficou confuso e instintivamente pôs em xeque o dinheiro e o filho. Estava muito evidente a sua preocupação com Odair. Muitas vezes, andando de um lado para o outro pela sala, todos viam a preocupação do velho. A relação de pai e filho com Odair sempre fora distante, mas eles tiveram os seus momentos. Muitas das viagens que Odair fez às custas do pai, foram feitas com ele mesmo enquanto criança. Nessa busca da intimidade com o filho, só a imagem da infância lhe vinha à mente. Via o filho ainda na sua primeira bicicleta, nos corais da escola, nas peças de teatro e nas feiras de ciências. Tentou aproximar a memória de lembranças mais recentes e sempre que chegava na adolescência, se pegava fazendo contas para saber quanto o sequestrador realmente merecia.
Entre uma lembrança e outra o telefone tocava, e a cada telefonema era uma negociação diferente, e o pai de Odair foi tomando cada vez mais a frente das negociações e chegou um momento que as lembranças do filho foram ficando cada vez mais apagadas ao ponto de ele acreditar que poderia ter o filho de volta por nenhum tostão furado.
Por outro lado, os sequestradores foram perdendo as estribeiras e a situação ficou tensa. Os sequestradores passaram a ameaçar a vida de Odair e o fizeram ouvir os berros do garoto quando lhe cortaram a metade de cima da orelha. Odair implorou para que os pagasse pois não suportava mais tanta dor. Já a mãe insistiu para que os pagasse pois não concebia a ideia de ter um filho, não sem orelha, mas pior: sem a metade dela. Ricardo, o namorado ficava chocado com a relação entre pais e filhos daquela família. Era inconcebível que um pai, que tem tanto dinheiro quanto necessário para seu namorado ter 7 orelhas novas, não pudesse pagar para que o tivesse vivo, ainda que sem orelha alguma.
No dia seguinte o pai recebeu dos sequestradores a metade de cima da orelha direita em um saco plástico. Na mesma hora o pai reconheceu a orelha como não sendo a do filho, pois se tratava de uma orelha perfeita, intacta; e não como as orelhas das pessoas que utilizam das agulhas para colocar seus adereços. Então anunciou:
- Esta história é uma farsa. Não terão um só centavo!
A mãe de Odair quase desmaiou. E Ricardo, entendendo o jogo do velho, o chamou de canto e lhe ameaçou com veemência:
- Ou me paga as quinhentas mi pratas ou mando matar o seu filho.
Então o velho entendeu tudo e retrucou:
- Então você está com ele neste jogo sujo. Pois então eu lhe digo: Dou-lhe quinhentas mil pratas se atirares tu no meu filho.
- Eu atiro! – Respondeu Ricardo.