sábado, 1 de agosto de 2009

Pomerode

Não chorou. Nem haveria de chorar pelos próximos 12 anos após a morte do pai. Não porque lhe faltou afeto e nem porque apanhou pela malcriação, mas pelo método que foi publicado o óbito no único jornal da cidade.
“(...)hedonista, empanturrava-se de álcool(...)adúltero, amante fugiu(...)nó de marinheiro, na viga da armação do telhado foi encontrado(...)fatal, suicídio bem sucedido.”
Era o que conseguia lembrar-se da notícia de outrora. Theo já sabia que seria assim. Na cidade em que morava, as pessoas não se davam ao luxo de deixar o destino decidir por si próprio. O morrer pelas próprias mãos era uma forma de enfrentar a repressão silenciosa de uma sociedade intolerante e retrógrada.
O que mais o impressionava é a quantidade de enforcamentos que tinha a cidade. Eram tantos que quando um óbito era anunciado, as pessoas já assumiam que tratava-se de um enforcado. A prefeitura se preparava para recebê-los no Hospital Geral da Insuficiência Respiratória. Uma junta de pneumologistas se reunia contra a praga dos suicidas e quando aparecia um caso mal-sucedido, os médicos o prendiam no Hospital para que não houvesse uma frustração maior decorrente do ato mal cometido. A família não os visitariam nunca, pois pior do que ter um enforcado entre os seus era ter um suicida fracassado.
A imprensa local não se cansava de cobrir matérias sobre os seus enforcados. A riqueza de detalhes espantava e trazia especialistas do mundo todo. As notícias eram escritas com termos tão minuciosos que havia quem acreditasse que o enforcado pudesse descer das cordas e caminhar sozinho para a redação para escrever a sua própria história de morte.
Cético, Théo não se abalava com a crença daquele povo. De sua mãe, Antônia, só conseguia lembrar uma frase, dita com muita dor e satisfação:
- Graças a Deus!
Não se questionou nunca sobre o conteúdo daquela frase, sabia somente que a divina providência não tinha nada a ver com a decisão de seu pai. Tudo o que o jornal dizia a respeito dele era verdade. Era um pecador nato e com orgulho. Tinha certeza que seu pai escolheu o enforcamento para que todos pudessem apreciá-lo, como uma obra de arte aberta a visitação.
Theo era um filho exemplar. Bem criado, nascido para ser bom marido. Porém sua mãe não contava com a preferência do filho por outros garotos. Incomodava-se com aquela estranha preferência, mas não se permitia dizer nada ao filho. Não o apoiava e nem o reprovada. Sua opinião era guardada para si mesma e isso já lhe bastava como castigo.
Théo conhecia o sofrimento interno da mãe, e por este motivo não se permitia entrar em aventuras sem futuro. Escolhia rapazes tão bons e honestos quanto ele. Se Theo percebesse um desvio de personalidade, qualquer indício de traição, abandonava o parceiro no mesmo instante, sem dar justificativa alguma.
Foi para São Paulo. Recusou-se a entrar na vida adulta naquela cidade, cercada de credos e hipocrisias. Tinha medo de ser traído pelo próprio destino e acabar como seu pai e a maioria das pessoas que conhecia.
Cercou-se de amigos novos e conseguiu um emprego modesto como assistente de produção. Na agência em que trabalhava todos gostavam do seu desempenho. Muito humilde e de uma simpatia contida, não faltou quem lhe oferecesse serviço. Era cansativo, mas estava contente com sua rotina, longe de todos os fantasmas que o perseguiam.
- Quem é esse rapaz?
Foi a primeira vez em um mês que Bruno tinha reparado em Theo.
- Isso é treta forte! – Respondeu o chefe de Theo, silenciando em seguida.
Bruno era um galinha nato. Ficava com todos os rapazes e quando era bom para o currículo, com as garotas também. Tinha consciência da sua beleza. Agradava-lhe os elogios, mas não usava deles para ser arrogante. Talvez essa fosse uma das (se não a única) qualidades de Bruno. Defendia o relacionamento aberto como a solução mais digna para a infidelidade.
- Não sou infiel. Sou visionário. – Dizia.
Como não podia ser diferente, partiu pra cima de Theo seguro de que ia conquistar o rapaz.
Sem sucesso, pasmou! Havia tempos que não recebia uma rejeição. Tanto tempo que nem se lembrava mais. Não desistiu.
- Essa bixinha vai ser minha!
A perseguição ficou acirrada. Os colegas que cobriam eventos relacionados a esportes narravam o desempenho de Bruno com comentários dignos de jogo de futebol , em dia de final pelo radinho a pilha. “Theo recuou para o banheiro, o adversário partiu para o ataque, mas perdeu a posse da bola pela zaga. Theo avançou para o refeitório, está cara a cara com Bruno, desviou do primeiro, do segundo e sentou-se no útlimo banco, próximo das rachas aliadas”. Theo achava graça, ao contrário de Bruno, que entendia aquela brincadeira como chacota dos colegas.
Só ia nas festas da agência quando tinha certeza de que Theo iria. E se não fosse, Bruno contatava alguém para arrastá-lo de qualquer forma. Oferecia bebida e drogas, mas o rapaz só bebia água e suco. Na cabeça de Theo, era inconcebível usar substâncias alucinógenas, ainda mais vindo de alguém que tinha a fama de “perversa”. A insistência era tanta que Theo começou a evitá-lo.
Meses se passaram e um dia Bruno não foi trabalhar. Ligaram no celular e foi dada a notícia:
- Não suporto mais tanta rejeição.
Com 40 graus de febre sem motivo aparente, ficou dias sem aparecer na agência. Não tinha forças para comer e nem para atender seus amigos mais íntimos. Tentaram de tudo. Festas na sua prórpia casa, michês, muito álcool. Bruno aceitava tudo, mas se Theo não estava presente, voltava para o quarto e só saía para arrumar a bagunça no dia seguinte. Arrumava tudo com muito carinho, deixava pronto para receber Theo na próxima festa.
Quando soube, Theo teve pena, afinal não queria ser a causa do sofrimento de qualquer pessoa, seja lá qual for o motivo, não era justo.
Foi visitá-lo em uma sexta-feira de frio e não o reconheceu. O encontrou em estado deplorável. No lugar dos sapatos finos, um chinelo encardido. Seu cabelo sempre muito bem feito possuía pontas duplas. E no lugar do outfitting moderno, estava um roupão de banho surrado e molhado. Embora convalescido, recebeu seu objetivo com um sorriso cansado, mas sincero, que o acabou surpreendendo Theo.
- Esse não é o Bruno que eu conheço. Se lhe vissem assim não te chamavam para trabalho nenhum.
Do outro apenas ouviu:
- Por que? Por que? Por que?
Entregou-se a Bruno e contou a história da sua vida. Da tragédia familiar, da reclusão e silêncio materno, da sociedade crédula e cruel da sua cidade, de seu pai infiel e fanfarrão, e por isso tudo, os motivos que o fizeram se mudar para São Paulo.
Comovido, Bruno se sentiu pequeno. Pediu que se retirasse e que finalmente estava livre de suas perseguições.
Theo, por sua vez, reconheceu o lado humilde de Bruno. Sentiu uma forte atração pela forma com que foi ouvido e pelo olho lacrimejado do rapaz. Passou uma noite como nunca havia passado na sua vida. A entrega foi mútua. Naquela madrugada foram felizes.
Não se falaram durante o fim de semana. Theo daria tempo para a recuperação de Bruno e pela primeira vez depois de anos sabia que amava.
No começo da semana, ao retornar na agência, percebeu os olhares acusativos dos companheiros de trabalho. Sabia que falavam sobre ele. Que Theo era o assunto principal. Por fim, a dúvida foi esclarecida pelo seu chefe:
- Até que enfim, heim? Não resistiu aos encantos do Bruno!
Inconformado e movido por um sentimento de raiva, procurou Bruno e o que encontrou foi indiferença e desprezo.
No dia seguinte foi a vez de Theo não aparecer na agência. Com os pés encostado no chão foi encontrado suspenso por uma corda no seu apartamento. Uma corda, com um nó de marinheiro enforcara Theo.